segunda-feira, 30 de junho de 2008

A semana da hipocrisia - Not a girl who misses much

Estava tarde, estava escuro, estava sozinha. Os postes eram daquela luz amarelada. Ela costumava amar o efeito dessa luz nas folhas das árvores, no seu caminho de volta para casa. Mas, naquela noite, as árvores guardavam algo. Ela não se lembra direito, mas lembra dos olhos. Eles não piscavam, eram diretos, afiados, como de um animal. Ele chegou perto e tentou pegar sua bolsa. Ela não queria dar. Ela era teimosa, sempre foi. A bolsa era sua, o dinheiro era dela, ela ganhou aquilo, não ia dar para nenhum filho da puta. E aí ela sentiu. Gelada, muito gelada. Mas o sangue que saía era quente, tão quente queimava, como se estivesse colocando sal numa ferida. Teve alguns segundos para pensar e, neles, desejou que a facada não a tivesse deixado paralítica. Ela não tinha medo de morrer, mas tinha muito medo de ficar paralítica.

Meses depois, ela ainda sentia o arrepio. Um calafrio horrendo que tomava seu corpo ao menor sinal de medo. Indescritível para qualquer pessoa que não estivesse na pele dela. E aí ela passou a sentir saudades de duas coisas. Sentia saudades daquela época em que achava que o John cantava “happiness is a warm welcome home” e aí, quando ela leu que era warm gun, não entendeu. E sentia saudades de se sentir segura.

Foi por isso que quando a amiga disse “vem, qualquer coisa eu te defendo”, ela foi. Elas trabalhavam juntas e estavam na última visita do dia. A casa era longe e a amiga sugeriu um atalho. Era dia, mas o atalho tinha árvores e era escuro. Ela não queria ir, mas quando a amiga disse aquilo, ela foi, porque sentiu como se tivessem tirado um peso de suas costas. Em todo esse tempo, ela tinha que se cuidar o tempo todo, tinha que ficar sempre esperta para que nada de ruim acontecesse de novo. Mas naquele momento ela poderia descansar, pois a amiga cuidaria dela e não deixaria que ninguém a machucasse de novo.

Enquanto elas andam, a amiga diz: “sabe, eu acho que isso aconteceu com você por algum motivo. Com certeza, Deus quer que você aprenda algo”. O chão abriu embaixo dos seus pés e ela sentiu uma dor tão forte que, se ela já não tivesse sentido dores piores, teria caído. Essa era a pessoa que iria defendê-la? Alguém capaz de uma hipocrisia tão grande? O único motivo foi que esse mundo é hostil, indiferente, perigoso e quase inimigo. E a amiga, fala tal merda com tanta propriedade. A propriedade típica daqueles que nunca passaram por nada, nunca sofreram nada além de uma dor de cotovelo. Quem sabe Deus, esse psicopata tomado por misericordioso e bondoso, não perceba que é hora de fazer algo assim acontecer à amiga? Só para ela aprender o quanto dói ouvir uma bosta dessa.

sexta-feira, 27 de junho de 2008

A semana da hipocrisia - Fair play

Você é um jogador de xadrez. Bom, muito bom mesmo. Você nunca perdeu um campeonato e jogar e ganhar são as únicas coisas que você sabe fazer. Os outros se espantam com a sua habilidade, mas você nunca se espantou. Você se vê como um leão. Ninguém comemora quando o leão tráz a caça. Achar a presa, elaborar a estratégia, esperar o momento certo, dar o bote, correr no limite, abocanhar e esperar que ambos os corações - da presa e do caçador - se acalmem. Nada disso é um feito para o leão, ele já nasceu sabendo, bastou apenas ver. Assim é o xadrez para você; natural, intrínseco.
E, justamente por isso, nunca se cobrou. Cobrança é para os fracos, aqueles que nunca sabem se conseguirão ou não. Você sempre consegue, ponto. Revolta é sentimento dos fracos também. Você não suporta aquele papinho de "o juíz me prejudicou", as mil desculpas que as pessoas inventam para justificar porque perderam. Elas perderam porque não eram tão boas, ponto. Elas perderam porque jogaram contra você, ponto.
Mas, sabe-se lá porque, antes do jogo seu coração acelera muito, você acha que todos ouvem, inclusive. E, nesse dia, ao ir para mesa, seu sapato sai do seu pé. No começo do jogo, seu braço (ou seria o seu cérebro?), seu instrumento, treme. Você não é alguém de sucumbir aos maus presságios ou aos maus começos. Então você joga, joga muito. Usa sua melhor tática, aquela de não olhar para o tabuleiro e sim para os olhos do seu inimigo, e vê neles a sua vitória. Mas não. Hoje simplesmente não era o seu dia.
Você é o vice, o segundo melhor, veja que bela merda! E você quer rugir, quer berrar, quer chorar, quer sussurrar. Você quer fugir da inevitabilidade do que está para acontecer: sentir o gosto acre do outro lado. Você se horroriza ao vislumbrar o que virá: sombrancelhas franzidas, sorrisos amarelos, passadas de mão na cabeça, clichês-consolos. Na próxima semana, toda vez que você encontrar alguém sentirá medo de que a pessoa queira saber o que aconteceu, procurar as justificativas que você odeia, ou, pior dos piores, consolá-lo. Cada encontro será tenso, você ficará na expectativa, ela falará ou não falará? Existirá outro assunto no mundo que não a sua derrota?
E se você é mesmo um leão, te sobra uma alternativa. Vá, mate seu inimigo, reaja. Ou, ao menos, chute a canela dele. Mas não, ah não, você terá espiríto esportivo, você será hipócrita. Faça seu sorriso amarelo para a foto oficial. Receba a medalha que certifica seu fracasso, como se você precisasse dela para se lembrar disso para sempre. Aperte a mão do filho da puta, diga parabéns. Nas entrevistas, elogie a capacidade dele, aquele bostinha que deu sorte uma vez na vida, diga que não dá para ganhar sempre. Dentro de você mora a verdade: esse resultado foi causado por um bater de asas de uma borboleta no outro lado do mundo, um acaso, uma fatalidade. Você é um leão e amanhã você estará na savana de novo. Afinal, é só isso que você sabe fazer.

segunda-feira, 23 de junho de 2008

A semana da hipocrisia - Rien de rien

Você tomou todas as decisões erradas. E sabe disso. Dorme velho, com os pés sozinhos e gelados. Namorou a mulher certa. Casou cedo com a mulher errada. Nunca se livrou dela. Teve um caso com a mulher mais certa. Nunca levou para frente. Sentiu em seus braços e no meio das suas pernas aquela que mais te venerava. Você a acusou, a humilhou, a colocou na sarjeta. Você apoiou a ditadura. Deu muitas lições de moral. Nunca olhou dentro dos olhos das suas filhas. Nunca reconheceu a dor dos outros, a não ser quando eram misturadas com as suas. Sempre que te aconselharam o contrário, você colocou todo o seu dinheiro nos investimentos errados. Você destruiu as coisas dos outros. Se preocupou com um pano de prato quando a casa estava em chamas. Você tirou sarro de quem sentia medo. Nunca pediu desculpas quando você sabia que estava errado. Você acusou quem tentava te proteger quando você era uma pombinha frágil, só para se aliviar. Só porque você podia. Sua cabeça estava confusa e isso sempre foi sua desculpa para tudo. Você disse que sempre quis ser feliz, mas nunca ninguém te deixou ser. Você nunca escutou quem tentou. E agora você me diz que não se arrepende de nada. Que se tivesse que viver sua vida de novo, faria tudo igual. Me desculpe pela franqueza, mas você não é Piaf. Você é hipócrita. Sabe que se você olhar para cada erro, e foram tantos, você perceberá que não te sobra muita escolha, você só poderá um dos dois: morrer ou mudar. E você não consegue nenhum deles.

domingo, 22 de junho de 2008

A semana da hipocrisia - prólogo

No horóscopo chinês, coisa na qual não creio, há um signo chamado cabra. "Cabras têm maior consciência de como desculpar as pessoas", my lover said. Ele continua dizendo que nós, as cabras, representamos a bondade, pois não fazemos cobranças e não as aceitamos para conosco. Nós distribuímos o açúcar pelo mundo. Mas isso não significa que sejamos Polianas, que amemos a todos. Simplesmente porque os bonzinhos, aqueles que não xingam, que nunca desejaram um malzinho sequer, são os hipócritas. Nós odiamos a hipocrisia, esse veneno que mata a liberdade de odiar, de invejar, de praguejar. We know for a fact que a liberdade é a irmã siamesa da bondade, não tem como existir a bondade "obrigada". Quando nos sacrificamos para fazer algo que consideramos ser bom, estamos automaticamente nos fazendo sofrer, o que é certamente uma maldade terrível.
Eu, cabrinha que sou, tenho essas idéias fazendo barulho na minha cabeça. E, puta merda, que barulho infernal e insistente elas fizeram nesses últimos dias, nos quais pratiquei e ruminei intensamente a hipocrisia. Com medo de incorporá-la, resolvi exorcizá-la nesse meu espaço, dedicando essa semana a ela. Caso você deseje ser um hipócrita, encontrará aqui algumas lições.

sexta-feira, 13 de junho de 2008

Lose your illusions: vamos todos morrer

Prefácio: estou desovando textos velhos, espero que eles aparentem algum sentido, como aparentaram quando estavam sendo paridos.

Bem ao estilo do Mr. Eko, vou começar do começo. Dizem que Adão e Eva cometeram o pecado original ao provar o fruto da árvore proibida. Todo mundo sabe que isso é uma metáfora, mas é engraçado pensar que ninguém sabe exatamente do quê. O que catso o fruto e a árvore representam? Já ouvi várias versões, não faço a menor idéia de qual seja a verdadeira, mas a minha favorita é aquela que diz que a árvore era a “árvore do conhecimento” e que, ao comer o fruto, Adão e Eva tomam conhecimento de que são mortais. A partir disso, eles tomam para si seus destinos, tentando evitar a morte. Alguns dizem inclusive que essa busca de algo que evitasse a morte criou a ciência.

Me peguei pensando como se vive uma vida sem consciência da morte. A idéia me pareceu irremediavelmente absurda até que lembrei dos animais, que vivem suas vidas exatamente assim, sem saber que morrerão. Essa constatação óbvia me levou a outro estado de espanto: se o animal não sabe que pode morrer, como ele se defende do perigo? Não quero a resposta básica dos genes egoístas, minha trip passa longe da biologia. Como é possível ter instinto de vida, se ele mal sabe o que é vida? Afinal, só conhecemos algo quando conhecemos sua negação. Tendo a pensar que o animal se defende para evitar a dor, que é algo que ele conhece, já que não depende de linguagem ou consciência. Me veio a lembrança de vários gatinhos doentes que vi. Muitos deles estavam bem fraquinhos e se eles comessem podiam se recuperar. Eles ficavam quietos, parados, prostados, não comiam, parecia que queriam morrer. Mas quando tomavam uma agulhada de uma injeção que podia salvá-los faziam um escândalo. Hoje entendo. Os gatos fugiam da dor, e não da morte.

Parece que nós fazemos o contrário, fugimos da morte, e não da dor (e muito menos das dores menores, os incomôdos chatos). Vou dar alguns exemplos que ficaram na minha cabeça. Acabo de voltar da França, onde o fumo foi proibido em todos os bares e restaurantes. Na França! Na França!! Preciso explicar o absurdo que é isso? A TV falava o tempo todo dos milhares de não-fumantes que morrem por causa do fumo passivo. Outro fato curioso que ocorreu na viagem foi ter cruzado com uma amiga muito bacana, cujo pai morreu de câncer. Ela se preocupa muito com isso, pesquisa muito na internet sobre prevenção e descobriu que desodorantes com alumínio podem dar câncer. Aí então ela vai de farmácia em farmácia lendo os rótulos dos desodorantes até encontrar um sem alumínio.


A idéia desse texto não é divulgar uma mensagem “vamos nos drogar, fumar, comer feijoada no café da manhã e tá tudo ótemo”. A medicina é algo essencial e tem doenças das quais ninguém devia morrer mesmo (como diarréia, desnutrição etc). E também sou uma pessoa da ciência, e não da fé. Minha inquietação é a seguinte: por termos consciência e linguagem, sabemos que vamos morrer e temos medo da morte, seja por medo da dor, por apego ou por seja lá o que for. Mas não tem jeito, lose your illusions: vamos todos morrer. Mas nosso medo é tão grande que ele se esgueira e nos invade, guia nosso comportamento sem percebemos. Em vez de nos darmos conta do nosso medo, somos tomados por ele e criamos uma sociedade obcecada pela conservação de algo definitivamente perecível. Fico louca quando leio alguma reportagem sobre velhice em que para dizer que um velho está bem dizem que ele parece um jovem. Então a velhice na real é sempre ruim. Fazemos um monte de estudos para descobrir como viver mais. Descobrimos, por exemplo, que comer pouco aumenta a expectativa de vida. Nosso medo (e também nossa ignorância) nos impede de ver que a pesquisa só diz que se passarmos a vida toda sem aproveitar o prazer supremo que é a boa comida temos uma probabilidade de x% de vivermos mais 5,43 meses. Procuramos culpados para a nossa morte: é o filho da puta do fumante da mesa a cinco metros de distância que está me matando, já que a pesquisa nos diz que quem fica por perto de um fumante tem y% a mais de chance de morrer. Esqueça: nossa chance de morrer é de 100%.

PS: não sou fumante e tenho muito medo de morrer também. Tenho mais medo ainda de que a pessoa que eu mais amo morra antes de mim. Mas isso fica um assunto para outra hora.

Fools on the hill

Abençoados sejam os vira-latas.
Os pedrestes numa noite de chuva.
Os cantores com calos na garganta.
Os garçons com síndrome do pânico.
Os cientistas que perderam a razão.
O paciente que perdeu a conta.
O poeta que perdeu o ritmo.
O impaciente que fica na fila.
O pai que fuma.
O diabético que não ignora a Páscoa.
O argelino que mora em Paris.
O paquistânes que tem que ir a Washington.
O vestibulando que encontra o portão fechado.
E os escritores, aos montes:
Aquele que perdeu o prazo.
Aquele que tomou um não.
Aquela cuja família leu a crítica ruim.
Aquele que cometeu um erro de português.
Aquele que sente vergonha do que escreve.
Aquele que nunca vende.
Aquele que sempre esquece os nomes das palavras.
Aquele que parou de sonhar.
E o que não sabe como terminar.

Esse blog vai ser sobre tudo aquilo que eu incorporo. Tudo que ultrapassa a fronteira e passa a fazer parte de mim. A começar pela comida. Mas indo dentro e além dela, quero escrever sobre os pensamentos que rumino, as dúvidas que habitam meus sonhos, os devaneios que tenho quando dirijo.
Não tenho a pretensão de fazer literatura, não vou pedir para o meu querido redator corrigir meus textos. Minha única expectativa é dialogar com esses objetos. Mas lógico que se alguém gostar e me mandar um comentário vou ficar muito feliz.